Sim. Gritos. Não daqueles que doem no ouvido, mas nas goelas e
nos corações. Pedaços autóctones de um discurso vagueando por um porão. Tiros.
“Acabaram de matar mais um lá embaixo”. E sabe quem vai lavar isso tudo? As
mães, com suas lágrimas.
Incelença. É um texto lindo de doer. Uma obra em que faltas e excessos se
encontram, mas não para se completarem e sim para protestarem e se atritarem
umas contra as outras. A falta do referente, do fruto do ventre, do ocupante do
lugar à mesa, do som de crianças brincando ou de jovens conversando na calçada.
A falta de respostas. A falta de identidade e reconhecimento de humanidade.
Todas as subtrações que se embatem com o excesso de dor, de corpo e de voz, o
excesso de invisibilizações, de mortes, de violências físicas e simbólicas que
apenas crescem e de pessoas que se tornam apenas números.
As mães mulheres sirenes, inscritas visceralmente nos corpos dos atores e
atrizes falam de um cotidiano que todos nós conhecemos e, por vezes, com o qual
nós nos acostumamos a conviver. A força performática das vozes e dos ruídos
produzidos pelas leoas feridas produzem um antídoto ao silêncio. Ao formarem
uma rede de dores ponteada por cada voz que pranteia um filho, uma filha, as
personagens quebram o silêncio e junto com ele quebram a banalização, a
dormência. Dor em êxtase, coração latejando, a voz vacilante ou exaltada se
impõe e prevalece reconstruindo as narrativas fragmentadas e destruídas que
revolvem o útero de qualquer mãe. Sim, refiro-me somente a mãe, pois há na
ausência das personagens pais dizeres muito significativos que são explorados
exatamente porque estão silenciados. A ausência fica implícita e esse “não ter
com quem dividir a dor”, diz mais ainda dessas vozes subtraídas de tudo:
fantasmas de mulheres que um dia foram mães e que agora, represadas, mutiladas
saem do porão escuro da revolta para trazer à luz o que todos preferem evitar
saber. E quem tiver ouvidos que ouça!
A única soma possível em incelença é a das vozes que formam um coro. Daí essa
imagem tão precisa, dessa manifestação religiosa popular que é a arte de entoar
cânticos em procissão. Os benditos, as incelenças, as recomendações pela alma
que vai e o pedido de socorro das que ficam: mães pobres, feridas, traídas pelo
Estado e ignoradas pela sociedade. A poeticidade realçada pelo caráter sacro
desses apelos à mãe de Deus, a última instância da desvalida é de fato
comovente. O que elas têm a não ser umas às outras? Duas metáforas prevalecem:
a da voz como jeito de existir no mundo e a da igualdade entre às mais
diferentes mães, cujo denominador comum é a dor. Acredito que o impacto da
ciranda das dores entoadas que atinge, de diferentes maneiras cada
expectador/a, promove uma visibilidade da alteridade, uma atenção que se
converte num incômodo necessário de que o teatro, beneficamente, tantas vezes é
causador: a humanização.
Foi na primeira dor
Foi quando a Senhora estava
Com seu filho Morto
Coroada de flor
Bendita sejais, ô Senhora das Dor
Cercada de anjo
Coroada de flor
Foi na segunda dor...