29 julho 2017

Prêmio Eris Maximiano: 8º Passo - Vila dos Pescadores de Jaraguá

Eu estava diante de uma mulher.

Estava diante de um simbolo.


Enaura Nascimento é para mim o exemplo mais forte de resistência e força dentro da cidade de Maceió.



Ela junto aos moradores da Vila dos Pescadores do Jaraguá protagonizaram um dos momentos mais fortes de luta contra o desrespeito com a memória e história de um lugar.

Enaura nasceu e cresceu naquele lugar. Fez sua vida, seus caminhos, sua família e sua história com a comunidade. Ela é um presente para essa cidade.

A vila existia há quase 60 anos.



Cheguei no condomínio onde hoje habitam os antigos moradores da Vila e comecei a percorrer o espaço. Queria encontrar Enaura. Não sabia notícias dela desde o despejo violento da Vila. Queria saber como é estar agora naquele lugar.


Atual local onde residem os moradores da Vila dos Pescadores


Condomínio 



Estive na Vila durante uma das virgílias do "Abrace a Vila". Eram mais de 22h e eu percorria os espaços de lá sem medo. Não havia violência, haviam pessoas em suas casas assistindo TV com portas abertas, conversando nas portas e sempre com um clima de tensão de a qualquer momento a polícia chegar e revirar tudo.

Salão do Tiririca improvisado no condomínio 


Com muito esforço Enaura junto aos moradores da Associação dos Moradores do Jaraguá - AMAJAR conseguiram implantar um ponto de cultura. Havia espaço para aulas de percussão, pinturas em tela, aulas de ballet, dentre outras atividades. O ponto tinha a sua sede organizada com cadeiras e tendas para quando fossem feitas exposições dos trabalhos realizados pelas crianças. Havia muita vida. Vida brotando na beira do mar.




Arquivo pessoal de Enaura das atividades do Ponto de Cultura


A prefeitura foi tentando muitas vezes entrar com ações na justiça para retirar os moradores de lá para direcionar para esse novo condomínio que fica perto do Trapiche. Algumas pessoas atenderam ao pedido. 

Enaura resistiu.

Arquivo Pessoal de Enaura das Atividades do Ponto de Cultura


Gabryela Borges dando aula de Ballet na Vila






Do lado de fora da Vila era comum ouvir comentários que seria melhor a transferência do lugar, pois era uma paisagem "feia" para a cidade, era como diziam: uma "favela".

Maceió tem em sua essência a necessidade de limpar a cidade. Houve tempos, por exemplo, que jovens de classe média queimavam moradores de rua vivos enquanto dormiam nas calçadas. Maceió é uma cidade que gosta de limpeza na vista e esconder a poeira debaixo do tapete é sempre a escolha mais fácil.

O Paraíso das águas é inferno para muita gente.

Lá na Vila haviam condições precárias de saneamento básico, por exemplo. Mas quem tem interesse em tornar o espaço de convívio das pessoas mais digno? É mais fácil dizer que as estruturas são precárias do que possibilitar uma qualidade de vida melhor no lugar que as pessoas escolheram para viver. Quanto mais dificuldades forem postas mais fácil as pessoas vão desistir e se render ao que os que governam desejam.

Enaura e Genivaldo




Foi brutal a retirada dos moradores.

É muito simples para os governantes ou a classe média que precisa limpar a vista para poder enxergar melhor a paisagem achar a retirada dos moradores da Vila um grande benefício para eles, mas aquele lugar é um espaço de memória, pois Enaura, por exemplo, nasceu e cresceu por ali. 

Casa é lugar de memória e afeto, casa mora em nós, como escreveu Bachelard:

"Nossa alma é uma morada. E quando nos lembramos das
"casas", dos "aposentos", aprendemos a "morar" em nós mesmos. Vemos logo
que as imagens da casa seguem nos dois sentidos: estão em nós assim como nós
estamos nelas."


Conversando com Enaura eu via a memória viva de seu lugar. Via também olhos tristes que só quem percebe como o mundo anda girando pode ter. Enaura habita o condomínio agora, mas sua alma faz morada na Vila.

Dentro de Enaura faz morada a doçura e a "força que nunca seca". Maceió não lhe tirou o sorriso e nem a coragem.

A questão é muito mais dolorosa do que você que agora ler pode imaginar. Lá na Vila as crianças aprendiam o ofício com seus pais. Ajudavam nas pequenas tarefas, tinham uma parte do dinheiro para comprar seus doces e brinquedos. As moças e rapazes tinham a oportunidade de ter sua renda e comprar perfumes e fazer chapinha no cabelo, como me deu como exemplo Enaura. Não havia ali necessidade de pedir dinheiro na rua, porque existia sustentabilidade.


Enaura e Genivaldo 

Hoje para poder pescar é preciso de madrugada pegar lotação para chegar ao local. Uma lotação deve estar em torno de R$4. Depois que se pesca pega-se mais uma para levar ao Mercado e assim o que antes era feito na porta de casa demanda uma nova logística que afeta também o financeiro e o estado físico das pessoas.

Lá no condomínio tem uma creche. Hoje estava muito movimentado por ser final de semana e as pessoas aproveitarem para farrear.

O Ponto de Cultura que foi demolido encontra-se com seu material de uso guardado no CENARTE, pois lá no condomínio não existe uma sala para o ponto de cultura e muito menos para a Associação poder se reorganizar.

Enaura me mostrava fotos do Ponto de Cultura em ação. Assistimos a um documentário feito pelo Instituto de Psicologia da UFAL sobre o processo de resistência e luta. Enaura me disse que sempre chorava quando assistia e que dificilmente consegue retornar a Vila dos Pescadores. 

"(...) a casa não vive somente o dia-a-dia, no fio de uma história, na narrativa
de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram
e guardam os tesouros dos dias antigos. Quando, na nova casa, voltam as
lembranças das antigas moradias, viajamos até o país da Infância Imóvel, imóvel
como o Imemorial" BACHELARD


Retornar a Vila é para ela um retorno de tudo que foi vivido ao longo de sua vida e principalmente no dia do despejo. 

Enaura me contou que estava lá diante da polícia e dos servidores da prefeitura no momento em que viu sua casa sendo demolida. Assistindo ao documentário observávamos o rosto de uma policial durante a ação. Havia naquele rosto um conflito interno evidente. Ela parecia entender o que estava fazendo, mas era obrigada a fazer, enquanto outros faziam sem pensar, porque o "importante" era retirar aquela "mancha" da orla maceioense.

Casa é coisa séria. Não existe ninguém que nos diga onde devemos morar. Nós sabemos onde fazemos morada. Casa a gente escolhe, a gente ressignifica.

"Nessas condições, se nos perguntassem qual o benefício mais precioso da
casa, diríamos: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa nos
permite sonhar em paz. " BACHELARD


Poucas coisas nos são permitidas nesse nosso tempo. Sonhar, por exemplo, em ter a Vila como um espaço cheio de condições dignas para se viver não caberia na cabeça dos governantes e dos empresários que dominam a cidade. 

Não há lugar para o sonho em Maceió. 

O sonho é feito na base da resistência, da re-existência de pessoas como Enaura que tem consciência que merece o melhor.

Quando vim morar em Maceió percebia e percebo as separações da cidade. O como ela nos educa para se comportamos de tal maneira, de irmos apenas a tais lugares... 

Maceió divide a gente. 

Tem lugar para rico e tem pouco lugar para pobre. Paulo Freire escreveu que:

" A cidade
é cultura, criação, não só pelo que fazemos nela e
dela, mas pelo que criamos nela e com ela, mas também
é cultura pela própria mirada estética ou de espanto, gratuita,
que lhe damos. A cidade somos nós e nós somos
a cidade”

Nós somos essa cidade que precisa ser educada. Já não nos cabe esse espaço de ter que estar dentro dela como disseram que deveríamos estar. Talvez resida aí a minha ainda falta de afeto com Maceió, porque dentro dela eu ainda não consigo me mover. Ela me educa para parar, para ficar quieto. Não quero essa cidade. Não consigo fazer morada nela desse jeito. É por isso também que nasceu esse projeto para apresentar o espetáculo "Volante" pela cidade. Para encontrar as pessoas que ressignificam o lugar, as pessoas que são a Maceió mais bonita e invisível, ofuscadas pelas praias.


"A Cidade somos nós também, nossa
cultura, que, gestando-se nela, no corpo de suas tradições, nos faz e nos refaz. Perfilamos a
Cidade e por ela somos perfilados." FREIRE


A cidade pode também ser educada. Ações como as ciclovias, a faixa azul,a ocupação das praças, o assumir-se viado, o respeito e direitos xs trans, travestis, deficientes, idosos, crianças... São passos que vem a cada dia mostrando que podemos viver melhor dentro desse lugar. Que ele pode ser refeito através das nossas ações, das nossas formas de ver o outro e aceita´- lo, respeitá-lo e amá-lo em sua diferença. Aliás, cidade é lugar que brota a diferença. Complicado é quando querem padronizar o nosso movimento dentro dela.

Maceió tem uma grande educadora.

Enaura, uma mulher negra, periférica, estudante de Direito, mãe, esposa... Ensinou para Maceió o que é ser cidade. 

Enaura nos educou com sua força. Maceió ainda não aprendeu, mas ela está aí de pé, cabeça erguida e pronta para resistir.

Enaura desconstruiu um velho ditado popular quando disse:

"Quem pode manda;
Quem tem juízo resiste e luta"

Enaura eu te agradeço por me ensinar a ser cidade, por abrir as portas de sua morada para mim na tarde hoje e quando escrevo morada é de alma que estou falando e nós que te admiramos sabemos onde está sua morada.

Enaura é inspiração. É a parte mais linda de Maceió.


O espetáculo "Volante" voltará ao condomínio em setembro e de lá transformará a história da Vila em cena do espetáculo para ser contada no bairro seguinte.

Deixo abaixo o documentário que Enaura me apresentou. É emocionante.

Viva Enaura! 
Viva a Vila dos Pescadores do Jaraguá!
Para sempre Vila!

Bruno Alves

Referências:
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço;
FREIRE, Paulo. Política e Educação.

Documentário
Quem tem juízo resiste e luta(2015)



Direção: Marcos Ribeiro Mesquita

Co-direção: Simone Maria Hüning

Roteiro: Alfredo Pontes, Alvandy Frazão, Amanda Feitosa, Felipe Miranda, Gabriel Nascimento, Jaqueline Lira, Marcos Ribeiro Mesquita, Maria Nativa Rodrigues e Rafael Fernandes. 

Produção: Alfredo Pontes, Alvandy Frazão, Amanda Feitosa, Felipe Miranda, Gabriel Nascimento, Jaqueline Lira, Marcos Ribeiro Mesquita, Maria Nativa Rodrigues e Rafael Fernandes.

Montagem: Alvandy Frazão, Amanda Feitosa, Jaqueline Lira, Marcos Ribeiro Mesquita e Maria Nativa Rodrigues.

Finalização: Alvandy Frazão, Amanda Feitosa, Felipe Miranda, Gabriel Nascimento, Jaqueline Lira, Marcos Ribeiro Mesquita, Maria Nativa Rodrigues, Rafael Fernandes e Simone Maria Huning. 

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"Volante" de praça em praça é um projeto de circulação por dez comunidades de Maceió. Apresentando o espetáculo e encontrando histórias e pessoas que ressignificam a cidade. As histórias encontradas serão transformadas em cena que irão ser contadas pelo personagem ao longo da jornada.






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