17 outubro 2014

Escrevendo para entender

Inicialmente o elemento que despertava interesse ao processo era a carroça utilizada por catadores para reciclagem na cidade de Maceió. Nesse meio havia também questões da confusão, cidade grande, congestionamento, ritmo acelerado, pessoas invisíveis, dentre outras. Ao conversar com Felipe de Alencar discutíamos sobre desigualdade e condições de vida na capital alagoana.

Encontrando caminhos...

O primeiro momento de busca textual era composto por poemas que tratavam do ser humano e sua relação com a cidade, com a vida, com as idas e vindas e os encontros e desencontros. Não havia uma ordem de texto, mas um arquivo com poemas de Florbela Espanca, Mário Quintana, Fernando Pessoa, João Cabral de Melo Neto, Sophia de Mello Breyner e Manoel de Barros.
Passei a observar e conversar com os senhores catadores de lixo e descobri que a carroça ganhava um significado mais amplo e mais coletivo, porque é ela um elemento que junta coisas, leva para outros lugares e é puxada por homens e mulheres. Carroça para mim, durante o processo dramatúrgico, tornou-se um simbolo de alma e passado. Coisas que todos carregamos, mesmo que abandonemos pelo caminho para esvaziar e pesar menos para seguir adiante.
Felipe de Alencar me apresentou músicas, tocou para mim e me falava da poesia que queria despertar no público. Falava de trazer questões sociais, mas também de levar a poesia da vida que passa despercebida aos nossos olhos.
Logo após essa primeira conversa ao som de músicas que despertavam sentimentos em Felipe voltei para casa com a sonoridade ainda acesa dentro de mim. Comecei a escrever questões até autobiográficas como alguém que trás a carroça cheia e precisa esvaziar. Como alguém que precisa se entender nesse processo todo.
Surgiu a segunda proposta de um texto dramatúrgico, desta vez com um personagem e a citação dos poemas referências ao longo do texto ainda sem cenas e indicações. Os textos que serviram de base para esse primeiro momento de esvaziamento foram textos de Fernando Pessoa, Mário Quintana, José Saramago, Herman Hesse e João Cabral de Melo Neto, além de músicas como “Estrela, Estrela” de Vitor Ramil que foram trazidas por Felipe durante as conversas.
Marcamos uma leitura e logo após a leitura Felipe de Alencar falou suas inquietações, acabou achando o texto muito denso e triste e imaginava uma estética mais Armoreal com personagem mais popular, esperto, confiante e com fé na vida. O “João Grilo” e outros personagens de Ariano Suassuna eram fortes na memória de Felipe e do que ele esperava para o espetáculo. Trouxe mais propostas sonoras e marcamos mais uma leitura com a presença de Elton Nascimento.
A chegada de Elton Nascimento trouxe mais riqueza de ideias e vivências pessoais. Era o encontro de um estudante de teatro com dois estudantes de música que começava a trilhar caminhos cada vez mais inesperados.
Quando li a primeira cena em nosso terceiro encontro, os músicos atuadores começaram a compor uma música, pois decidiam que iriam apostar na música autoral como forma de facilitar o processo de circulação do espetáculo no futuro. Ao ouvir a primeira música composta para a primeira cena despertou uma sensação de confusão interior, pois essa era uma música que tratava de esperança e  felicidade, porém apresentava uma sonoridade que se repetia e parecia nunca ter fim. Foi este o mote para a terceira proposta do texto. Um personagem “Armoreal”, "Quixoteano",  com essências da Commédia Dell ‘ Arte, que com sua carroça vive a busca de procurar a felicidade pelo mundo num circulo que nunca tem fim, assim como a nossa busca cotidiana.
Severino foi o nome escolhido para o nosso anti-herói, pois sua maior referência já vinha se anunciando ao longo do surgimento do texto ao se ter “Morte e Vida Severina” como leitura. No entanto, esse Severino é um alagoano, não muito diferente do Severino de João Cabral, nem dos tantos Severinos existentes pelo Brasil. Carrega como marca a esperança, a alegria e a inocência de quem inventou um mundo para si.

Segundo Luis Alberto de Abreu:
O texto dramático não existe a priori, vai sendo construído juntamente com a cena, requerendo, com isso, a presença de um dramaturgo responsável, numa periodicidade a ser definida pela equipe”

Em Volante tínhamos em comum o interesse pelo elemento da carroça de reciclagem. Eu, enquanto ator-criador, me propus a direcionar a dramaturgia textual tentando dialogar inquietações pessoais com inquietações coletivas e mesmo apresentando uma proposta inicial de texto, este foi modificado em todos os encontros que tivemos ao longo das últimas semanas. Ganhando assim, uma nova forma e um novo direcionamento. Vale ressaltar que mesmo se modificando em cada encontro o texto do espetáculo vai mantendo a mesma essência da inquietação inicial e hoje no sexto encontro continua tratando da relação do ser humano com o espaço físico e suas relações ao longo da vida. O interessante é que a essência permanece e o que se modifica é o personagem e as cenas que vão surgindo ao longo dos encontros e amarrando ainda mais o que é definido pela equipe.
Os músicos-atuadores ao longo do processo estão cada vez mais próximos do personagem e apresentam-se como personagens da história que guiam com sua música Severino pelo mundo dos sonhos que ele criou para suportar a fome, o frio e a indiferença.
Elton Nascimento, nos nossos encontros no mês de junho, me propôs que pesquisássemos exercícios que trabalhassem a questão da voz do ator na música. Fizemos nesse mesmo dia o exercício de falar o texto de acordo com o ritmo da música, depois acompanhar as pulsações da canção com movimentos no próprio corpo.
A música vem ao longo do processo descobrindo seu espaço, sendo uma elemento que joga com o ator. Esse exercício do ator jogar com a música e a música jogar com o ator tem se mostrado evoluindo ao longo do processo, pois no nosso sexto encontro já notavámos a necessidade de marcar o espaço, fluir a cena de acordo com a musicalidade e a musicalidade fluir de acordo com a métrica do texto, quando for o caso.
Vamos caminhando... Vamos escrevendo para entender o espetáculo, experienciando para sentir a nós mesmos e o mundo ao redor.

Bruno Alves da Silva
(Escrito em 02 de julho de 2014.)
Referência

ABREU, Luis Alberto de. Processo colaborativo : relato e reflexões sobre uma experiência de criação. Cadernos da ELT, Santo André, v.1, n.0, p. 33-41, mar. 2003.

07 outubro 2014

A primeira vez que vi "volante"...


Era um estranho dia chuvoso do mês de outubro de 2014, ressaca de período eleitoral e eu não sabia o que fazer para transportar o cenário do espetáculo para o local de ensaio na praça Sinimbu. Era a primeira vez que eu ensaiaria com o elemento cênico que foi ponto de partida para a construção do espetáculo Volante.
Quando cheguei na praça tinha parado de chover, mas ficava sempre um céu ameaçando um temporal. Montei o cenário, montei a carroça e comecei a descobri-la no movimento, no corpo, no espaço. Era emocionante olhar para ela, era ver materializado o que antes era apenas um desejo.
Passavam pessoas na praça, olhavam com estranheza um homem a dar "pinotes" com uma carroça. Josué se sentou próximo ao local do ensaio, acendeu seu cigarro, tirou a mochila das costas e ficou observando meus erros e acertos ao longo do processo. Tinha sempre um olhar tão imparcial, mas as vezes parecia querer responder as perguntas do personagem.
Terminei o ensaio. Sentei ao lado de Josué e perguntei seu nome,puxei assunto, quis saber o que tinha achado, fui logo me desculpando e explicando para ele que se tratava de um ensaio, que errar fazia parte para chegar num acerto. Ele me falou palavras bonitas. O pouco que ele escutou trouxe para fora lembranças de memórias vividas. Quis saber de Josué onde ele morava, ele quis mudar de assunto e disse apenas que vinha de um lugar como o do personagem, "essa história que você fala é quase a minha história". Fiquei em silêncio e absorvido pela sensibilidade de suas palavras, era a primeira vez que eu ia para a praça, a primeira vez que eu ensaiava com a carroça, era a primeira vez que eu via Josué.
Falou-me dos estados que passou, dos seus três meses em Maceió, de como gostava do mar, das tristezas, dos dias que se sentia sozinho, de Deus, do seu analfabetismo, dos seus 28 anos de aprendizado com a experiência que só a vida pode trazer, falou- me do seu estado de origem Pernambuco, e do tempo que vive longe de casa...
Uma passagem para o infinito.
Fotografia: Nivaldo Vasconcelos.

Não faço ideia da história da vida de Josué antes de sua partida pelo mundo, mas imagino o quanto  ele aprendeu nesses últimos anos em que tornou-se volante na vida.
 Agradeceu-me pelas palavras ditas pelo personagem, ficou ainda mais feliz em saber que era a primeira pessoa a assistir meu ensaio com a carroça. Mal sabia ele que grato estava eu pelo aprendizado, pelos seus olhos atentos, pelo seu exemplo de despojamento e entrega. Mal sabia ele que receber seu sorriso foi uma forma de me sentir fortalecido e certo do desejo de estar perto das pessoas que tem tanto a dizer, tanto a ensinar. Mal sabia ele que era como um sinal aquele encontro, aquele momento vivido debaixo de uma árvore no meio de uma praça, no meio de um mundo ameaçado por uma tempestade.
Josué não tem carroça, carrega uma mochila nas costas com suas histórias, sua casa, sua alma, sua vida...
Trocamos um aperto de mão na despedida. Ficou no peito a certeza que a gente se encontraria em alguma praça, alguma rua, alguma esquina de qualquer lugar nessa vida.


Bruno Alves da Silva