04 setembro 2018

Sobre encontros e afetamentos de "Incelença" em Arapiraca - AL.


Há dois anos atrás íamos a Arapiraca pela primeira vez com o Coletivo Volante de Teatro para apresentar no meio de uma praça o nosso primeiro espetáculo, o “Volante”, que dá nome a esse coletivo.

Deslocar-se facilmente, atirar-se, buscar habilidades para o voo.... Isso é o que nos propõe esse nome que o coletivo recebe, isso tem sido também a nossa busca e missão.
Deslocar-se facilmente e atirar-se em busca de uma proximidade com um público desconhecido, seja ele quem for, seja aonde estiver.

O projeto Aldeia Arapiraca do SESC AL nos proporcionou esses momentos, pois no dia 02 de setembro de 2018 estávamos lá pela segunda vez para reencontrar esse público e se lançar nos braços de um outro público que não conhecíamos.

Em 2016, ano em que iniciamos a montagem do espetáculo “Incelença”, Alagoas aparecia com 6 das 20 cidades mais violentas do Brasil nos dados do Mapa da Violência elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). Nesse mapa Arapiraca era a 18º cidade mais violenta para se viver no Brasil. Vale ressaltar que esses dados são de 2016.

“Incelença” parte dessa inquietação com esses dados e o constante aparecimento de Alagoas entre os lugares mais violentos para se viver.

Recentemente um levantamento feito Datafolha e divulgado pelo jornal Folha de S.Paulo no dia 21 de agosto desse ano mostrou que o governo alagoano está entre os estados mais ineficientes do País na relação entre recursos financeiros e cumprimento de políticas públicas. Leia mais AQUI!


Estávamos em Arapiraca para falar sobre essas vidas e não podemos de deixar de falar que são vidas de jovens negros e periféricos. E não podemos esquecer que por aqui, nesse estado, a cada 13 pessoas assassinadas por ano, 12 são negras e periféricas.

O SESC AL escolheu para nossa apresentação a Casa de Caridade de Candomblé Ilê Axé Dará Xangô Oya, uma ong localizada no Bairro da Vila Contente que tem como liderança o Pai Alex. 

Aqui em Alagoas as Casas de Ilê Axé possuem um trabalho forte e socialmente importante dentro dos bairros periféricos, pois em sua maioria estão localizadas dentro dessas periferias e realizam trabalhos espirituais e sociais de acolhimento e construção de dignidade humana e autonomia. Cada Casa dessas, visto que conhecemos algumas também aqui em Maceió e Viçosa, lugares que temos mais acesso, possuem esse trabalho tão importante.



Saíamos em direção a Vila Contente, no caminho estrada sem asfalto, uma estrutura de amontoado de sucatas, dentre outras coisas.

Crianças brincando na rua.

Fomos recepcionados por Sandra, esposa do Pai Alex, e quem coordena muitas ações dentro do espaço. Sandra nos acolheu de coração aberto. Esteve ao nosso lado o tempo todo e cuidando para que nos sentíssemos em casa. A ONG Casa de Caridade é um espaço lindo.

Foto de Fernanda Vasconcelos


Pai Alex chegou. Acolheu-nos, fez algumas perguntas e retirou-se. Soprou no ar fumaça de bênçãos, proteção e retirou-se.

Continuamos pelo tempo respirando as energias boas daquele lugar. Dentro de mim habitava uma felicidade por estar ali, porque algo me dizia que algo aconteceria e nos afetaria de alguma forma.

Pai Alex retornou mais uma vez. Observou nosso material de cena espalhado pelo chão e direcionou seu olhar a uma matraca que usamos. Foi direto ao objeto e nos contou:

“Eu sou o último encomendador de almas da região”.

Contou-nos a história da matraca em sua vida, contou para que era usada, quem a usou, e sua importância em um contexto um pouco esquecido de muitos de nós. Falou-nos dos cantos das incelenças, rememorou muitas coisas, presenteou-nos com essas memórias e retirou-se mais uma vez para só retornar quando iniciássemos nossa missão.

As crianças iam e vinham dentro do salão. Sandra já mobilizava a comunidade para que vinhessem pela noite assistir. Para as crianças ela dizia:

“Só entram se trouxerem um adulto para acompanhar”.

E ali naquelas palavras iniciou-se também a missão das crianças de convencer um adulto para trazê-las para assistir.

“O Helicóptero da polícia vem por aqui direto”, falava-nos Sandra.

Aos poucos contava-nos de mães que perderam seus filhos e filhas e do constante crescimento da violência naquele espaço.

“Incelença” já havia começado desde o momento que pisamos naquele chão.

Anoitecia na Vila Contente.

Pessoas de outros bairros da cidade, ou “pessoas da rua” como costumam chamar as pessoas de outros bairros os moradores da Vila Contente, vinham em seus carros e caronas para assistirem ao espetáculo. Algumas perguntavam “temos que esperar a peça começar aqui fora mesmo?”.

A comunidade se aproximava do portão de entrada para o espetáculo.

“Incelença” aconteceu. Salão lotado.

Foram 50 minutos de espetáculo.

Foram 2 horas de conversa com o público.




Pai Alex compartilhou conosco sua história como encomendador de almas. Contou-nos a história da Vila Contente, que ainda é conhecida como “Cabaré Velho”, mas que seu primeiro nome sempre foi “Vila Contente”.




Falou-nos sobre a violência no bairro e principalmente sobre a violência na cidade. A exclusão e a marginalidade da “Vila Contente” dentro da cidade de Arapiraca.

Foto de Lili Lucca


Houve uma explosão de depoimentos e inquietações no público presente. As pessoas que assistiram a peça continuavam ali para falar sobre seus cotidianos.

Foto de Lili Lucca



Pai Alex dizia:

“Essa mãe daí da peça que lava a roupa mora aqui.

Essa mãe da feira também mora aqui.

Essa mãe que procura a filha mora aqui também”.

No meio desse turbilhão estava Zilma.

Zilma perdeu seu filho para a violência.

Zilma estava ali o tempo todo assistindo, escutando.

Zilma vibrava dentro de nós.

Uma hora quando alguém da plateia, que não mora na Vila Contente, compartilhou que a partir daquele momento olharia criticamente a situação da violência em sua cidade e que antes não havia prestado atenção ou dado importância as coisas que aconteciam com pessoas negras e periféricas.

Zilma olhou para a pessoa e perguntou duas vezes:

“Você nunca se colocou no lugar outra pessoa?

Você nunca se colocou no lugar de outra pessoa?”.

Pai Alex com a ajuda de um senhor cantou-nos duas incelenças.

Zilma permaneceu por ali escutando. Levantava. Fumava um cigarro e voltava a sentar conosco.

Foram cerca de três horas com a gente ali se olhando no olho, construindo um novo olhar sobre as coisas, desconstruindo olhares, permitindo-se estar errado, reconhecer nossos erros, nossos privilégios e tentando entender algo além do que mostrou ali na peça.

Estávamos na Vila Contente rodeados com mães como Zilma que carregam a dor de perder alguém que colocou no mundo.

Incelença para nós ganha novos caminhos a cada encontro como esse.

Incelença é para Zilma.

E Zilma pergunta a mim e a você:

“Você nunca se colocou no lugar de outra pessoa?

E o que a gente faz quando o encontro com o outro nos afeta e nos pede uma reação a tudo isso que está aí exposto na nossa cara, no nosso lado?

Bruno Alves


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