23 dezembro 2017

"Incelença" por Analice Lean

"A ciranda das dores ou gritos de leoas feridas" por Analice Lean

Fotografia de Xanda Souza

Sim. Gritos. Não daqueles que doem no ouvido, mas nas goelas e nos corações. Pedaços autóctones de um discurso vagueando por um porão. Tiros. “Acabaram de matar mais um lá embaixo”. E sabe quem vai lavar isso tudo? As mães, com suas lágrimas. 

Incelença. É um texto lindo de doer. Uma obra em que faltas e excessos se encontram, mas não para se completarem e sim para protestarem e se atritarem umas contra as outras. A falta do referente, do fruto do ventre, do ocupante do lugar à mesa, do som de crianças brincando ou de jovens conversando na calçada. A falta de respostas. A falta de identidade e reconhecimento de humanidade. Todas as subtrações que se embatem com o excesso de dor, de corpo e de voz, o excesso de invisibilizações, de mortes, de violências físicas e simbólicas que apenas crescem e de pessoas que se tornam apenas números.
As mães mulheres sirenes, inscritas visceralmente nos corpos dos atores e atrizes falam de um cotidiano que todos nós conhecemos e, por vezes, com o qual nós nos acostumamos a conviver. A força performática das vozes e dos ruídos produzidos pelas leoas feridas produzem um antídoto ao silêncio. Ao formarem uma rede de dores ponteada por cada voz que pranteia um filho, uma filha, as personagens quebram o silêncio e junto com ele quebram a banalização, a dormência. Dor em êxtase, coração latejando, a voz vacilante ou exaltada se impõe e prevalece reconstruindo as narrativas fragmentadas e destruídas que revolvem o útero de qualquer mãe. Sim, refiro-me somente a mãe, pois há na ausência das personagens pais dizeres muito significativos que são explorados exatamente porque estão silenciados. A ausência fica implícita e esse “não ter com quem dividir a dor”, diz mais ainda dessas vozes subtraídas de tudo: fantasmas de mulheres que um dia foram mães e que agora, represadas, mutiladas saem do porão escuro da revolta para trazer à luz o que todos preferem evitar saber. E quem tiver ouvidos que ouça!
A única soma possível em incelença é a das vozes que formam um coro. Daí essa imagem tão precisa, dessa manifestação religiosa popular que é a arte de entoar cânticos em procissão. Os benditos, as incelenças, as recomendações pela alma que vai e o pedido de socorro das que ficam: mães pobres, feridas, traídas pelo Estado e ignoradas pela sociedade. A poeticidade realçada pelo caráter sacro desses apelos à mãe de Deus, a última instância da desvalida é de fato comovente. O que elas têm a não ser umas às outras? Duas metáforas prevalecem: a da voz como jeito de existir no mundo e a da igualdade entre às mais diferentes mães, cujo denominador comum é a dor. Acredito que o impacto da ciranda das dores entoadas que atinge, de diferentes maneiras cada expectador/a, promove uma visibilidade da alteridade, uma atenção que se converte num incômodo necessário de que o teatro, beneficamente, tantas vezes é causador: a humanização.


Foi na primeira dor

Foi quando a Senhora estava
Com seu filho Morto
Coroada de flor
Bendita sejais, ô Senhora das Dor
Cercada de anjo
Coroada de flor
Foi na segunda dor...

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