Volante de praça em praça...
Volante pela cidade!
Volante no dicionário quer dizer aquilo
que voa, que tem facilidade de voar, que se desloca facilmente, que não tem
residência fixa, que é mutável, móvel, lançado ao ar...
Maceió, a cidade que moro há seis
anos, parece ser uma cidade feita para nos fazer parar, mas aqui dentro desse
lugar começo cada vez mais a encontrar gente que se desloca facilmente, que é
mutável, que mesmo morando aqui não possui residência fixa.
Falar de morada é coisa profunda,
pois “onde está teu pensamento, lá está teu coração”, é bíblico isso, não é?
É.
E é bonito.
Vou contar um segredo antes de
chegar ao assunto. Quando criança em Viçosa, até por volta dos meus dez anos de
idade, morei em uma rua que tinha um grande campo, acabava virando um campo de
futebol aberto a todo mundo da rua e é assim até hoje. O mesmo campo era o
lugar de se armar as lonas dos circos que chegavam na cidade. Haviam épocas que
eram de um lado o circo e do outro a galera jogando bola.
Nessa rua também, durante minha
infância, fui vizinho de ciganos. Cresci nesse momento tentando me acostumar
com as chegadas e partidas. Meus amigos ciganos e circenses da mesma idade que eu,
vinham morar por lá e aos poucos fui entendendo que logo eles não estariam mais
ali. O bom disso tudo é que quando se é criança não se pensa muito nessa coisa
da partida. O importante era a gente brincando no terreiro: crianças circenses,
ciganas e os que já viviam por lá, como eu. Crianças. Até hoje uma coisa acende em meu peito quando
vejo ciganos e quando vejo circo.
Mas essa história que eu contei
agora não é só para ressaltar a coisa do nome “volante”. Tem muito mais a ver
com o encontro que tive hoje.
Comecei na tarde desse dia 17 de
julho a caminhar pela cidade para descobrir as pessoas que ressignificam esse
lugar. Essa ida até os lugares é a primeira parte do projeto “Volante de praça
em praça” que foi aprovado em 2015 pelo Edital das Artes Eris Maximiano da
Fundação Municipal de Ação Cultural de Maceió- FMAC.
Irei visitar dez localidades para
conhecer a comunidade, ser afetado pelo espaço, escutar, perceber, conhecer um
pouquinho de cada lugar, me sentir pertencente a cidade e transformar isso em
cena para o personagem do espetáculo. Assim, ele terá dez histórias de pessoas,
ONG, Associação ou qualquer outra forma que exista dentro da comunidade de
re-existência. A cada bairro visitado, o personagem contará uma história que
trouxe do bairro em que esteve anteriormente. Os bairros conhecerão através
dele uma história de um outro bairro da cidade.
Vou muito mais por precisar
conhecer mais esse lugar. Meu peito ainda tem muitas resistências a essa
cidade, tem dias que ela me sufoca e encontrar gente volante me ajudará a
renovar meu olhar sobre ela.
Então comecemos essa jornada.
1º Passo – Primeiras Histórias
Estive na Chã do Bebedouro.
Fui até o mirante para ver o
outro lado da cidade e escolher um lugar para apresentar o espetáculo.
Tenho um tio que mora por lá e
quase morei quando vim para cá, mas “o amor leva a gente para o lugar que a
gente tem que estar” e no meio da quase mudança eu me casei.
Homens sentados nos bancos do
mirante jogando dominó. Contei dez, contei quinze e perdi as contas.
Um carrinho vendendo pipocas,
guarina, cachaça e água de coco. Tomei guarina.
Duas escolas estaduais.
Um centro de apoio psicossocial.
Uma via principal com carros
subindo e descendo o tempo todo.
Visão privilegiada a do mirante.
A lagoa Mundaú abraçava a minha
vista. Estava frio. Pouco sol. Alguma chuva e um pôr do sol rosado, delicado
como os encontros que tive hoje.
Queria encontrar a casa que foi
de Mestre Benon em que brincou por muitos anos com seu Guerreiro Treme-Terra.
Eu amo esse nome: Treme-Terra!
Eu lembro como era a casa. Um
salão enorme colorido. Soube que após a morte do Mestre a casa ficou
abandonada, uma parte foi demolida e o outro pedaço virou um bar.
Ao lado da casa de Mestre Benon
existe um campo enorme como o que tinha lá em Viçosa. Haviam adolescentes e
crianças improvisando um campo de futebol naquele espaço. Era um grande estádio
de futebol.
De frente ao campo existe a
Escola Estadual Jornalista Freitas Neto. Conversei com Valdimar e Adriana sobre
o espetáculo e solicitei apoio para levar os estudantes a assistir.
Quando saí da escola sentei no
mirante e de frente eu via um circo na frente da casa que foi do Mestre Benon.
É realmente um terreno imenso.
Fiquei minutos sentado de frente
para o circo olhando, sem pensamento exato algum na cabeça, eu estava ali
apenas e resolvi entrar no circo.
Uma grande família trabalhava.
Roupas secavam no varal.
Um cachorrinho amarrado na
corrente estava de frente a um dos ônibus/casa.
Alguém organizava o equipamento
de fritar batatinhas, outro preparava a pipoqueira, do outro lado o carro de
som anunciava o circo com entrada de R$5 e R$3 logo mais à noite.
Comecei a conversar com o dono do
circo dizendo que pretendia apresentar o espetáculo no bairro mais adiante.
Conversamos por quase duas horas.
Meus olhos brilhavam ao ver
aquele homem me contando a história do circo.
É o Circo Sandra (que recebe esse nome por conta de uma irmão sua) fundado por seu
pai em 1948 na cidade de Colônia de Leopoldina - AL. É um dos circos alagoanos
mais antigos do estado.
Ele e seu irmão Everaldo nasceram
e cresceram debaixo daquela lona.
Ele me dizia que aquele era o
lugar que se sentia mais protegido. Dentro dessas lonas existia um porto
seguro, por fora uma cidade difícil.
Havia muito amor ali. Eu me sentia
protegido dentro daquelas lonas. Havia uma outra Maceió naquele lugar.
Falou-me das dificuldades
encontradas ultimamente para poder instalar o circo, das cobranças inúmeras de
taxas da prefeitura e do constante assédio que sofrem com ameaça de serem
despejados. Para se ter noção, a prefeitura cobra para eles as mesmas taxas que
cobram a esses grandes circos que passam pela cidade. A diferença é que o
grande circo, além de ter patrocinadores, cobra um valor alto e eles não podem
cobrar um valor mais justo mediante o próprio público da região que não teria
condições de pagar para assistir.
Ouvi muitas histórias do circo.
Contou-me que uma vez o vento
veio e derrubou a lona. Contou-me que por ali todos crescem fazendo e se
descobrindo em várias funções, inclusive ir para a portaria e vender as
guloseimas.
Seus dois filhos hoje são
palhaços. Preparavam as roupas. Iam de um lado para o outro.
Reclamou-me da precariedade e da
falta de incentivo, mas eu via em seu olhar e em seu discurso o quanto o amor
por sua arte era maior que tudo isso. Eles estavam ali de pé, mesmo que a
ventania aparecesse para derrubar a lona. Eu via a arte e a vida de mãos dadas.
Logo eles sairão de lá. O susto
maior veio quando ele me informou que não retornaria a armar sua lona ali. “Vão
construir uma delegacia”.
Fiquei pensativo com essa
informação, porque nesse nosso tempo é muito mais valioso investir em
delegacias e presídios do que fomentar a cultura e dar acesso as pessoas de
terem possibilidades e inspirações para viver. Mais uma delegacia e o risco de
termos um espaço a menos de cultura e riso.
O circo vai procurar outro bairro
na cidade, outro terreno, antes que sejam cada vez mais escassos os espaços e
que só existam prédios e prisões.
Terminei o dia na beira do
mirante vendo o sol se pondo e pensando em tudo que foi vivido nessas horas.
Deu vontade de ficar mais tempo, de ouvir mais, mas já era o suficiente para o
nosso encontro.
Eu vi mãos que levantam lonas em
terrenos secos. Corpos que arrancam risos em espaços que aos olhos do estado só
servem para levantar prisões.
Voltei para casa mais forte,
apesar do baque com as condições que o circo enfrenta. Forte por ver vida e ver
vida cheia de poesia e beleza, “belo como o coqueiro que vence a areia
marinha”.
Nós não estamos sós nesse mundo. Nós somos
muitos!
Bruno Alves
Esse projeto foi contemplado com o Prêmio Eris Maximiano de 2015.
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