18 julho 2017

Prêmio Eris Maximiano: 2º Passo – Fernão Velho



Começar pelo começo.

São 9h da manhã. Subo no ônibus Centro/Rosane Collor para descer no terminal da Colina e pegar outro ônibus que me leve ao meu destino.

Um rapaz sobe e vende chiclete sem açúcar a R$1.

Um senhor sobe e pede ajuda para comprar remédio para sua esposa.

Um outro rapaz sobe vendendo cremosinho (geladinho). Ele desce sem vender nenhum.

Quatro pontos depois um rapaz entra vendendo cremosinho. Espera! É o mesmo rapaz. Ele percebe que entrou no mesmo ônibus. Eu caio numa crise de riso. O ônibus todo ri. O rapaz ri e continua sua cena:
“Estou vendendo DE NOVO cremosinho na promoção. É bom pra saúde, pro corpo e pro coração”.

Mais uma vez ele não vendeu nenhum. Desceu do ônibus e eu fiquei torcendo que até o fim do meu percurso ele subisse de novo.  Seria, digamos, uma cena completa de palhaçaria. Não sei se ele voltou. Eu acho que ele voltou para finalizar sua cena. Eu acho.

Masco chiclete sem açúcar. 

Espero o outro ônibus no terminal da colina.

Tomo café na barraca de uma senhorinha que cuidadosamente me diz que ônibus pegar e onde descer.

“Pegue do outro lado. Se você ficar desse lado vai voltar pra onde veio”.

Recebi o conselho como uma profecia.



Um sapateiro conserta sapatos do outro lado do ponto. Lá está escrito “Rei dos Sapatos”. 
Vossa Majestade protege no seu reino os pés de sua corte.


Havia um bêbado também. Em Viçosa os bêbados se concentram em uma praça. Estão todos os dias lá. Figurinhas conhecidas. Houve um dia que ouvi alguém dizer: “Vou te esperar na praça dos papudinhos”. Papudinho é um termo usado para se referir a alguém que bebe todo dia cachaça.

Estou mais sensível hoje. Parece que sair de casa com o objetivo de parar, escutar e ver me faz perceber melhor a vida brotando nas pequenas coisas.

Esses meus relatos correm afoitos e cegos por vontade de alguma poesia. Eu sei que a realidade, o dia a dia em cada lugar que estou passando é bem diferente, mas estou treinando os meus olhos para enxergar as coisas boas e assim tentarei fazer nessas andanças. Quero o encontro que fortalece, quero muito mais a esperança para caminhar mais forte. Tenho precisado de esperança. E quem não está nesses nossos dias?

Estou descendo a ladeira que dá acesso ao bairro de Fernão Velho. 


Já desci essa ladeira outras vezes. Quando criança vim algumas vezes passar as férias na casa da minha tia que era no Rio Novo. Estive por essa ladeira em outros momentos e conheci a ONG Eu Mundaú que realiza um trabalho lindo na região.

Toda vez que eu desço a ladeira a sensação de coisa boa vai enchendo meu peito. Tem a lagoa como vista e isso é um presente, mas o entendimento do motivo que me trazia paz já na descida da ladeira eu vim entender depois das horas que passei por lá.

Desço no terminal de ônibus. 

Pessoas circulam e esperam no terminal.

Tem uma igreja matriz.


Lençóis no varal.


Pracinha do Padre Cícero do Juazeiro.

Carroça atravessando a rua.



Crianças vindo da escola.

O som do trem anunciando a partida e a chegada.



Árvores grandiosas e lindas.




Uma feira.


Tem gente dando bom dia sem nem me conhecer.

Tem gente sorrindo como se fosse constante a minha presença naquele lugar.
Nunca em Maceió eu sorri tanto para as pessoas na rua.

Começo a entender a sensação que me causa ao entrar no bairro. Eu sei que em muitas coisas me lembra Viçosa. É o ritmo de Fernão Velho que me encanta.

Em Fernão Velho a vida desliza suave como lagoa.

Encontro no meio da praça um tronco cortado com um trono por cima dele. Eu lembro do Rei dos Sapatos, mas sei que naquele trono que ali está qualquer pessoa pode ser rei ou rainha.


Fernão Velho tem cadeiras espalhadas pela rua. Cadeiras mesmo para quem quiser sentar e tomar uma “fuga”. Aos poucos senhores chegam, sentam, conversam, alguns bebem, outros só observam a rua acontecendo.

"Para e senta um pouco!"


Fui na escola Pedro Cabral e na escola Herminio Cardoso conversar com a  direção e apresentar o espetáculo. Encontrei no chão na subida para uma das escolas um panfleto do Circo Sandra. Convidando os estudantes e a comunidade. Eram os reencontros acontecendo.

Reencontro

Mas tem uma coisa que me chamava atenção no bairro há muito tempo e hoje foi o dia de me aproximar. Lá existe um lugar chamado Big Brother. Um bar, eu pensei. Mas é mais que isso.

Não tem Pit-bull.


Passando pela frente existem várias bonecas, discos, orelhões, dentre outras coisas penduradas nas árvores e em um muro. Eu fiquei “passado” com aquilo tudo organizado de uma maneira que para mim é visualmente muito interessante. Algum momento deu medo, mas quando me aproximei fiquei apaixonado.









No portão estava escrito “Cuidado Pit-bull”. Tentei observar e não via pessoas e nem o Pit-Bull. Reparei que havia um senhor sentado assistindo TV, tomando uma cervejinha. Pedi para entrar e para ele prender o Pitbull, que obviamente não existia. 





Não era o dono do lugar, era o “Seu João”, amigo do dono.

- Aqui é um bar, Seu João?
- Não. Um bar não. Mas quem quiser pode sentar aqui para beber – dizia-me.

Comecei a fotografar o espaço e em seguida Seu João me levou a casa do dono, que fica em frente.



Seu Toinho, o criador daquele espaço, devia estar tirando um cochilo quando o encontrei, mas foi super gentil e dócil. Uma das pessoas mais simpáticas que já conheci. 




Ele me apresentou câmeras, telefones, rádios e outras antiguidades que guardava em sua casa. Desde criança tem paixão por colecionar coisas antigas. Aos poucos o espaço “Big Brother” se tornou um local em que as pessoas também levam antiguidades ou móveis e coisas que queiram se desfazer para seu Toinho organizar, harmonizar e embelezar a rua.





Há alguns anos quando passei rápido por lá com minha sobrinha ficamos viajando que aquele lugar seria um castelo de princesas e que pela noite as bonecas se transformavam em crianças e iam brincar na rua. Ela me dizia que havia uma bruxa por lá também transformando as crianças em bonecas.

Assim eu viro fitness.


Seu Toinho tem um bar, mas não é o espaço Big Brother, o bar fica na garagem de sua casa. No Big Brother as pessoas vão para beber, conversar... As vezes compram a bebida no Seu Toinho, mas se trouxer a bebida de casa também pode sentar por lá e prosear.

"Se usar o gás tem que pagar"



Eu ficava ali criando leituras daquele espaço. Lembrava de Bispo do Rosário, lembrava dos textos que li no Blog da Adélia Nicolete sobre Dramaturgia do Descarte. Eu estava ali diante de um lugar cheio de possibilidades.

“O povo vem aqui e deixa as tranqueiras pra ele” – comentava seu João.

Eu, assim como Seu Toinho, tenho profunda admiração e atração por tudo que é descartado, jogado fora... Aliás, o espetáculo “Volante” nasce daí também.
Seu Toinho foi um big brother que encontrei nessa manhã. Um volante guardador de histórias. 

Seu Toinho "duchampiando"








Falei da peça e ele me disse que iria assistir.

Seu Toinho e eu. Registro feito por " Seu João".





Tive que ir embora. Tinha que pegar o trem, que por sinal é o meio de transporte mais usado no bairro, pelo menos para os estudantes da redondeza.

Fui andando e me perguntando: 
"Por que eu não moro aqui?"

Eu perdi o trem, mas não tinha problema algum. A manhã tinha sido linda o suficiente para ficar mais alguns instantes vendo aquela dança, aquele fluxo de lagoa ali na minha frente, 

dentro de mim.

Bruno Alves

Esse projeto foi contemplado com o Prêmio Eris Maximiano de 2015.



2 comentários:

  1. Eu amo gente que enxerga! Como ser artista sem esse olhar? Muita luz na sua caminhada Bruno!!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Poxa Jocianny! Agradeço a sua visita e por ser parte desse caminho.

      Excluir